sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Uma carta para Deus...

        


Uma carta para Deus!



Quantos correios já não receberam cartas endereçadas para o destinatário “Deus”, endereço “Céu”, a maioria escrita por crianças pedindo um brinquedo, um milagre, que o papai e a mamãe acordem do longo sono ou voltem logo a morar juntos, além de respostas para muitos porquês?
Lembrei disso outro dia vendo um programa de televisão, não me lembro qual. Fiquei aborrecida ao assistir a tal programa porque eu, quando criança, não escrevi uma carta a Deus, sequer ao Papai Noel. Necas, nadinha de nada de pitibiriba.
Aliás, a idéia de escrever uma carta a Deus nunca havia passado por minha cabeça até ontem de madrugada, quando vi o sol nascer cinza. Estava tiritando de frio, enrolada num cobertor, calçando pantufas ridículas e ouvindo a trilha sonora de “Grey's Anatomy”, enquanto a névoa cortante do amanhecer levava meu sono embora.
Toda a cidade pareceu abandonada e terrivelmente triste. Os primeiros ônibus passando na avenida professor alfonso bovero, as primeiras luzes dos apartamentos acesas, as primeiras pessoas andando apressadas e encolhidas para algum lugar, os primeiros carros saindo cedo para escapar do rodízio municipal e as luzes das ruas que ainda estavam acesas.
Olhei pro céu e aspirei profundamente o cheiro daquela manhã de segunda feira. O que havia de especial nela? O que me mantivera acordada, velando o sono dos que amo, durante toda a madrugada? Por que o olavo matou a thaís da novela? Por que tostines vende mais?
Esfreguei minhas mãos duras e soprei-as para aquecê-las. Esforço em vão. Só consegui uma fumacinha meiga que sai da boca quando está muito frio. Lembrei dos beijos que dei no inverno, na avenida paulista, que também soltavam fumacinha da boca, de nossas duas bocas.
Lembrei da primeira vez em que vi neve e queimei minhas mãos quando as afundei, eufórica, no jardim coberto de branco. Criança é algo imprevisível mesmo, eu sequer chorei por causa da neve que queimava de frio e fui logo atrás de umas luvas emprestadas. Passei a tarde inteira me refestelando, de tudo quanto é jeito, no meio da neve, que na verdade é dura, mas naquele dia era fofa – era algodão, massinha pra moldar, a coisa mais linda do mundo.
Senti saudade, saudade boa que aqueceu um pouco meu corpo exposto em frente à janela do 10º andar, da primeira vez que tomei chá preto com uísque, ao lado dos meus pais, vendo a lenha queimar na lareira de nossa antiga casa. Dizia meu pai que o tal chá preto com uísque era bom para espantar a gripe.
Logo a saudade boa deu lugar a uma saudade urgente, doída, congelante – saudade de ficar olhando toda a cidade cinzenta acordando, de mãos dadas com a pessoa que amo, enrolados os dois no mesmo cobertor, quietos e imersos em seus pensamentos que passavam devagar, como as primeiras nuvens que víamos se dissipar.
E da urgência, do desespero de querer contar que fui até a janela e vi um amanhecer único, efêmero, sentei-me em frente ao computador e resolvi escrever uma carta para explicar a vida que ardia diferente naquele momento, por alguma razão que eu desconhecia.
Sim... escrever uma carta, mas para quem? Para um amigo ou um nome qualquer da lista telefônica, talvez para um antigo namorado cujo endereço mudou, para o meu chefe, meu pai ou minha mãe que mal escrevem português e me acham uma balzaquiana perdida?

Não... minha memória evocou minha infância. E senti que deveria fazer uma coisa cujo “timing” eu havia perdido – escrever uma carta para Deus. Uma carta sem apresentações (oras, sou sua criatura), sem grandes formalidades, com algumas questões, muitas críticas e agradecimentos. Perguntando por que naquela manhã sentia-me tão pequena mas intensamente viva, por que meus amores são errados, por que minhas mãos continuavam frias e o mundo me engolia e, para finalizar, perguntei como dar um “upper” a cada golpe deste mesmo mundo, com ritmo, ginga e “jabs” estilosos, tal como Cassius Clay fazia no ringue. Assim, escrevi a tal carta com um pe-essezinho só: "afinal, os anjos da guarda existem?". Enviar a carta tornou-se então um problema: não queria passar-me por ridícula nas agências do correio e no mais eu nem saberia quanto selos seriam necessários para uma carta endereçada ao Céu.
Acendi um cigarro para pensar um pouco e vi que a fumaça subia em direção ao céu até sumir. Deus deve ser fumante passivo, ri-me sozinha, inventor do Champix e dos adesivos de nicotina. Entre uma baforada e outra, achei que devia queimar a carta. É claro que todas as letrinhas iriam se transformar em fumaça e chegar ao Céu. Mas, e as cinzas? E as cinzas, God? Sabe que uma coisa engraçada aconteceu e que os físicos e químicos expliquem depois o fenômeno: queimei a carta e não sobrou cinza alguma. Tudo virou fumaça, dissipando-se pro alto, com cheiro de neve. Estranho, né? Eu agora duvido que Deus não tenha recebido minha carta.

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